A Herança
Trouxe consigo da guerra uma promoção a Tenente Coronel e uma enormidade de traumas. Reencontrou sua mulher um tanto envelhecida, o sofrimento fez mais diferença que a idade, também não pouca. Ela o amava. Foram tempos difíceis.
Agora afastado da atividade militar, o quartel ficou lá longe de onde o Coronel escolheu para passar o restante dos seus dias. Dois anos e meio, exatamente foi o que lhe restou. Mais de dois anos naquela pequena cidade interiorana. Fechado em seu jeito de ser, mantinha uma convivência discreta com os moradores dali. Sua mulher também o acompanhava nesse modo de vida, não que fosse assim na sua juventude, mas pelo tempo que passou ao lado dele, acabou por assimilar o seu comportamento. A curiosidade dos moradores era exacerbada. Especulações exageradas campeavam pelos quatro cantos da cidade. Por que teriam escolhido justamente ali para virem morar, é o que perguntavam uns aos outros. É que não se tinha notícia de ninguém que teria vindo de fora, que tenha escolhido ali para residir. Todos conheciam a todos e eram todos dali. Por que alguém viria para um lugar tão pacato e monótono, diziam perguntando. Depois daquele janeiro em que o Coronel faleceu, parece que não existia mais o que falar entre eles a não ser no tamanho da fortuna que a viúva herdaria. O vai e vem de comentários especulativos cada vez mais atiçava a imaginação das pessoas. Pouco ou quase nada de verdade era possível saber. Naqueles dois anos o casal levou uma vida muito discreta. O conforto em que viviam não havia como esconder. Isso era tomado pelas pessoas de que economicamente estariam muito bem. Com o passar do tempo a viúva passou a apresentar problemas de saúde. Frequentemente visitava os consultórios médicos da cidade vizinha. Esse fato, aos poucos foi aguçando as cobiças e alimentando as especulações. Espalhou-se o boato de que ela era rica, que possuía bastante dinheiro e que seus dias estavam por findar. Em pouco tempo ela se tornou o melhor dos partidos. Jovens, muitos muito jovens, não se importavam com o fato dela ser uma mulher velha, sonhavam com a fortuna. “É velha mas é rica”, “amanhã ela morre e o rico serei eu” diziam. A velha passou a ter um tratamento especial. Gentilezas não faltavam. Mães interesseiras levavam-lhe quitutes, doces, faziam para ela muitos dos serviços rotineiros sem nenhum pagamento. A velha reinava soberana ali no lugar. Expedito, o garoto que durante todo o tempo, desde que o casal foi para lá, cuidou dos cavalos e manteve sempre impecáveis as duas charretes que o casal tinha e usava em seus passeios, que sempre gozou da confiança deles, que nunca pensara em mais nada além do seu pequeno pagamento, acabou por se deixar influenciar por aquele disse que me disse do povo. Passou a olhar a velha com os olhos do interesse. Sua mãe foi a sua principal atiçadora. Ela o induzia para esse modo de pensar, ela sonhava com a vida rica. Via-se na posse de todos os bens da viúva. Ela dizia ao filho que ele estava muitos passos na frente de seus concorrentes, pois trabalhava na casa, entrava e saía com plena liberdade, que era da absoluta confiança da viúva. Dizia que agindo com inteligência ele colocaria a mão na fortuna da velha, que a fortuna logo seria só sua, porque a velha estava perto do fim. Afinados, iriam urdir a teia. Conquistar a velha para se casar com Expedito. Com toda a matreirice de mulher madura e de malícia refinada, a mãe passou a instruir o filho. Tudo bem feitinho, muito bem engendrado, que mulher velha não se jogaria nos braços de um vigoroso, agora homem, de dezoito anos, dizia a mãe. A velha estava doente, o tempo corria contra eles, precisavam de rapidez. Ninguém estava interessado em qual seria a doença, só se falava no pouco tempo que ela viveria e no quanto ela possuía. Muito dinheiro sim, sim! Muito dinheiro, era a notícia que corria. O empenho trouxe resultado, a velha estava no papo. O futuro seria brilhante. Dias passados, casamento marcado, o moço no seu dilema. A velha apaixonada, sua carência insaciável, ele já entojado. O casamento já bem pertinho, ele na encruzilhada, pegar ou largar, seguir ou parar, a liberdade, o dinheiro, o trabalho duro, a vida boa. A carência dela inesgotável. Casou! Comunhão de bens como era a norma. Dinheiro? Sim! A boa pensão do Coronel. Conforto, boas roupas, nada de trabalho. A velha não economizava, dava ao rapaz uma vida que ele não teria sem ela, mas exigia dele na medida de sua carência, da sua enorme carência. Os dias foram passando e já não se falavam mais na doença da velha, nada de remédios nem médicos, a velha estava curada. E a fortuna? Somente a pensão do Coronel, que cessaria no dia da morte da velha.
JV do Lago
Enviado por JV do Lago em 01/07/2020
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