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Contos de Minas - O Violeiro Macabro

          A festa no rancho do Justino corria solta. A sanfona, o violão e o pandeiro davam conta de animar o arrasta pé até varar a madrugada. A cachaça, os homens repartiam entre eles e entre algumas mulheres mais ousadas; as demais ficavam com o quentão ou chás de algumas variedades, alfavaca principalmente, que sempre acompanhava as broas e os biscoitos recém tirados nas fornadas.
A lua era minguante, a noite estava escura e o sereno molhava a vestimenta de quem ficasse algum tempo do lado de fora da cobertura.
O cavaleiro, montado em um tordilho preto, roupa e chapéu de aba larga abaixada, pretos, amparado por uma capa grande, de cavaleiro, de feltro, também preta, chegou e apeou sem ser notado por ninguém. O Homem, sujeito magro e alto, cabelo e barba bem aparados, pegou na garupa da montaria um estojo de couro, todo escuro com acabamento requintado, e entrou no salão sem ser percebido. Sentou-se em uma cadeira, colocou o estojo sobre a mesa e de dentro dele tirou uma viola, uma lindíssima viola preta, muito brilhante com tarraxas e cordoamento prateados. Começou bem devagar e baixinho a fazer um ponteamento. Soava tão melódico que parecia mágica. Alarde nenhum; aos poucos, os que dançavam ali perto foram parando de dançar, voltando a atenção para o estranho. Ninguém até então havia reconhecido o fulano. Uns foram alertando os outros até que ninguém mais dançava. A música do salão parou e o som da viola começou a prevalecer, foi se encorpando quanto mais silenciosos os presentes embasbacados ficavam. Ninguém mais dançou. Nunca ninguém dali tinha ouvido som parecido, extremamente melódico, nada ritmado. O violeiro dominou a todos. Pareciam sob efeito de uma hipinose coletiva. A madrugada corria, aos poucos ele os orientava a irem embora. Tudo foi conduzido pelo tal, de modo que todos se foram antes que o iniciasse o amanhecer. A mulher e a filha do Justino também foram para casa, que era ali bem pertinho. Tendo ficado somente o Justino e o misterioso sujeito.
Justino se sentou próximo do violeiro e perguntou: Como é que consegue tocar viola desse jeito? De onde você veio? -Ora! Vim porque você me chamou! Como te chamei se nem sei do teu nome e nem de onde você é! - Vim te ensinar a tocar viola conforme o nosso trato! Trato? Que trato? Nunca tratei nada contigo! - Então não me chamou dizendo que ia me entregar sua mulher e sua filha se eu te ensinasse a ser o melhor violeiro de todo o povoado? Pois você vai ser o melhor violeiro que existe em todo lugar que passar, vai ser assim como eu, vai ser sorrateiro, ninguém vai te ver; vai se mostrar na tua hora e no teu jeito, vai dominar os ambientes, vai dominar as mentes; viu como parei a tua festa? As festas que fizer vai levar as pessoas a se matarem de tanta alegria, o prazer que todos querem será absoluto e escancarado, ninguém terá o poder de censurar; o poder será a sua vontade, será do jeito que quiser. Poderá puxar  pro teu colo as mais lindas criaturas; satisfazer qualquer desejo que tiver. Vai ficar rico na medida que pretender; terá quantas fazendas quiser. As mulheres mais lindas brigarão entre si para ficarem com você. Vai se olhar no espelho e se achar o mais garboso dos homens. Veja só o precinho que pagou; sua mulher e sua filha não são nada diante de tudo isso que terá. Então o seu aprendizado na próxima madrugada vai começar.  
Justino, carregando no saco sua velha viola, que pertenceu a seu pai, que foi cantador de Reis e do Divino Espirito Santo, chegou no salão e ficou esperando. À meia noite cravada chegou o macabro violeiro. A primeira coisa que falou, em tom de imposição, era para que Justino jogasse lá fora o saco com a viola, dizendo: - É por causa dessa viola que você não  consegue tocar bem, ela te trava os dedos e te confunde a cabeça. Pega a minha e toca; mas não vem com as cantigas ruins do teu pai; canta aquela do sujeito que matou a mulher porque se confundiu achando que ela o traía. Justino tocou a moda sugerida, ficou maravilhado, o fantástico soar da viola nos seus parcos acordes que sabia fazer, o deixou eufórico, gostou demais também da própria voz. O estranho o inalteceu dizendo que aquilo erá só o comecinho, que bom mesmo ele ia ficar com o passar dos dias, conforme ele fosse fazendo tudo que ele mandasse. Disse, amanhã na mesma hora a gente se encontra aqui. Traz a viola que vou te mandar, mas  agorinha mesmo, antes de entrar em casa, pega o machado e estraçalha aquela viola velha e depois faz fogueira dos cacos que sobrar, queima com o saco e tudo, queima também aquelas dedeiras que vieram junto com a viola pras tuas mãos.
Justino pegou o saco com viola, muito convicto do que fazer. Não caminhou dez passos e começou ouvir, saindo de dentro do saco, uma melodia; reconheceu facilmente, era o solo da cantiga que seu pai tocava e cantava pra Santa Virgem. Sentiu uma forte emoção que o fez verter lágrimas; lembrou da sua situação naquela hora e ficou extremante divido. O que fazer? Era realizar o seu maior sonho de ser um grande violeiro ou continuar daquele jeito medíocre como achava que era a sua vida. Sofreu com o seu dilema durante o curto percurso e em casa enquanto se preparava para cumprir o que o estranho homem tinha ordenado. Pensou um tempo e decidiu que iria simular a queima da viola.  Tirou a velha viola do saco, foi ao quarto onde se encontrava já dormindo sua filha Juliana, colocou a viola de pé encostada na parede ao lado do catre onde Juliana estava dormindo. Voltou pra cozinha, ao lado do fogão, pegou alguns gravetos secos e colocou no saco; pegou a caixa de fósforo, algumas palhas e o machado que ficava encostado na parede perto do fogão e saiu para o terreiro. Deu algumas machadadas no saco e o barulho da quebra dos gravetos, imaginou ser igual ao que seria se estivesse quebrando a viola. Fez a fogueira deixou queimando e saiu para ir se deitar. Nem bem virou as costas ouviu um barulho e sentiu um vento forte, virou-se e pode ver um redemoinho passar sobre a fogueira levando o fogo até a pastagem mais próxima, viu o fogo começar a se alastrar. Gritou forte Madalena e Juliana. Madalena veio correndo ainda de camisola e ao ver o acontecido, junto com o marido, começou a encher os baldes na bica d’agua e corriam para jogar lá no pasto, numa missão quase impossível pra só os dois e quatro baldes. Gritaram Juliana, mas ela não veio. Justino, no escuro ao abrir a porteirinha  de arame farpado, acabou por sangras as duas mãos, mas nem se importou. Foram horas naquela correria, e num repente, uma situação estranha, um grupo de vultos escuros quase invisíveis na escuridão da noite, passou na frente deles e dali em diante o fogo foi minguando até se apagar. Exaustos, Madalena correu para ir ver Juliana, e Justino correu rumo ao curral, pois escutou o bater da porteira, que possuía uma tramela que seria impossível ela abrir sozinha. A porteira estava fechada, mas o gado não estava no curral. Alguém abriu a porteira e soltou o gado no milharal, meio sem saber o que fazer, voltou-se em direção da casa mas resolveu ir ver o bezerreiro, pois não ouviu nenhum berro vindo de lá. Tomou um susto medonho com o que se deparou. Os bezerros estavam todos enforcados, pendurados nas toras de eucaliptos utilizadas na cobertura do lugar. Apavorado com tanta coisa ruim, saiu correndo e caiu ao tropeçar em um leitão que estava no caminho, correu para o chiqueiro e para entrada do mangueirão, viu que tudo estava aberto. Todos os porcos, os de engorda e os de reprodução estavam todos misturados e soltos pelo pomar, pela horta e pelo milharal.
Madalena entrou na casa e entrou também em desespero. A casa estava dominada por um odor horrível, fedor de enxofre de fezes e mijos, tudo misturado. - Juliana minha filha, repetia em gritos, num choro de desespero. O chão era uma lama sinistra, pisoteada, com marcas nas paredes, de sujeira e de estragos provocados objetos ponteagudos. Juliana, minha filha, gritava apavorada. O quarto de Juliana estava ainda pior. Além de tudo, havia espalhados no chão, sangue, pelos, fezes e urina de animais. Uma luta sangrenta aconteceu dentro daquele pequeno quarto. Madalena cruzou os braços no peito, abaixou a cabeça, e num choro incontido se ajoelhou ao lado da cama de Juliana. Juliana dormia um sono profundo, atarracada à velha viola. Madalena, depois de ter chorado muito, levantou os olhos e olhou com muito carinho para o rosto de sua filha. Juliana respirava e dormia profundamente. Madalena tentou tirar a viola dos braços de Juliana, mas o abraço era tão apertado que se Madalena tivesse empregado toda sua força não teria soltado. Aos poucos Madalena começou a compreender o que teria acontecido ali. Viu que havia um círculo com raio do comprimento da cama de Juliana. Dentro da área desse circulo, não havia sequer um respingo de qualquer coisa, nenhuma forma de sujeira. Naquele pedacinho o mal não conseguiu tocar. Juliana dormia profundamente atarracada à viola e não acordou naquele momento.
Madalena saiu para procurar por Justino, passou pelo galinheiro e nem se importou muito ao vê-lo destruído e suas galinhas que gostava tanto, todas despedaçadas, espalhadas pelo ambiente. Seu sentimento naquele momento era de muita gratidão e fé, porque percebeu que Juliana estava segura, que se ela não fora atingida,  não seria mais.  Com o rosário nas mãos, orando, continuou procurando por seu marido. O dia estava clareando,  ela o viu caminhando sem rumo pela estrada, carregando nas costas a bela viola daquele sujeito. Com agilidade que talvez nunca tivera, correu em direção de Justino, colocou em sua testa o rosário, de imediato ele soltou a viola no chão. A viola desapareceu, e ele um tanto abobado, disse à Madalena que não sabia porque estava na estrada nem onde estava indo.
Consciente de que o mal estava por perto, Madalena puxou Justino pelo braço até em casa. Sua intenção era acordar Juliana e que os três fossem juntos pra cidade pedir ajuda ao sacerdote. Tentou muito, Juliana não acordou. Ficou pensando no que fazer. Tinha fé que Juliana estava segura, mas de modo algum a deixaria sozinha naquela casa. Com muita fé, mas com muito medo também, decidiu que Justino deveria ir só.  
Com o rosário no pescoço e a medalhinha da Santa Virgem na mão, Justino pegou o caminho, a pé; naquele caos que virou o seu sítio, não saberia onde encontrar os cavalos. Madalena o havia recomendado muito, para que ele não olhasse para os lados, que não ligasse para chamado nem gritos de ninguém e de nada. Seria quase duas horas de caminhada.  Logo que entrou no corredor dos eucaliptos, já era dia, mas mesmo assim a estrada ficou escura; começou a ouvir chamarem pelo seu nome, hora voz de criança, hora voz de mulher. Latidos vinham de dentro da mata. Entrou na cava funda, onde os barrancos dos dois lados da estrada são bem altos, ouvia atrás de si, o som de pedras jogadas, seguido de risadas, gargalhadas. Tremeu muito de medo, achou que não conseguiria suportar, orou o tempo todo. Por todo o percurso foi provocado. Urubus que assentavam nas cercas, tropéus de toda espécie atrás de si.  Zunidos de pedradas, pássaros com cantos tristes ou barulhentos, crianças rindo ou chorando, mulheres falando palavrões. Tosses, assovios, palmas. Já chegando na cidade começou ouvir a si mesmo, aquela música que ele tocou na viola do dito cujo, parecia gravação, ele achou maravilhoso, mas conseguiu não olhar pros lados.
Entrou na igreja, a missa tinha acabado de terminar, correu e chorando se jogou aos pés do padre, dizendo que precisava se confessar. O  padre também um tanto assustado, ouviu tudo com atenção. Justino envergonhado contou da sua promessa de entregar sua mulher e sua filha pro coiso se ele conseguisse ser um violeiro bom.
Justino cumpria sua penitência, o padre preparou a charrete, pegou o que precisava e os dois rumaram pro sítio. Chegaram, cada coisa em seu lugar, não tinha estragos nas roças, o gado, os porcos, as galinhas, tudo estava normal. Juliana, cantarolava enquanto varria o terreiro e Madalena, punha as roupas no varal. Nenhuma delas lembravam de nada, sorridentes prepararam o almoço, enquanto o padre benzia a propriedade.
Justino, ele mesmo buscou tijolos e tudo o que precisava; construiu uma capela e o altar pra Santa Virgem, no altar arranjou um espaço e colocou lá a viola velha.
Justino nunca mais fez baile, nunca mais tocou viola.          

JV do Lago
Enviado por JV do Lago em 01/08/2020
Alterado em 01/08/2020
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